domingo, 30 de janeiro de 2011

PARTE III - CONSTANTINO E A VAGINA VÃO Á IGREJA.

FOI UM CUSTO DANADO para convencer a Vagina de ir á igreja. Mas como todas as vaginas acabam sendo compreensíveis no fritar dos ovos, esta acabou por aceitar, ainda que muito a contragosto.
Constantino acordou de ressaquinha e tomou algumas aspirinas para aliviar a dor de cabeça.A Vagina cantarolava um bolero podre. Lá fora, um sol tirânico dos trópicos queimava o lombo dos transeuntes.
"É uma ideia infveliz essa sua." Disse ela.
"Vamos á Igreja e pronto! Talvez tudo isso seja um pecado. E depois, faz tempo que não vou á Igreja. Aposto que você nunca pisou numa, por isso veio parar aqui na minha testa."
"Se ainda não sabes, é pela testa que o homem esporra o fluxo da consciência."
"Não interessa. Vamos á Igreja e pronto."
Naquele finalzinho de tarde subiram devagar as escadarias da Matriz. As poucas pessoas que haviam na Igreja derramavam suas confissões secretas para a cruz no altar. De joelhos, Constantino rezava baixinho. A Vagina insistia no bolero podre:
"Dá um tempo!"
"O que vai dizer pro padre?" Perguntou ela, enfastiada.
"Que nasceu o pecado em minha testa."
"Os padres são todos pederastas, sabia?"
"Cala a boca! Estamos numa Igreja."
Constantino olhou um instante para a cúpula onde se lia:

"Audi, vide, tace, se vis vivere in pace."

Um anjinho de dois pênis olhava encabulado para ele. Constantino levantou-se e dirigiu-se ao confessionário. Fez uma ligeira genuflexão e iniciou a conversa com o padre:
"Padre..."
"Pois não, meu filho."
"Eu pequei, padre! e o resultado desse pecado nasceu em minha testa. Veja o senhor!"
O padre olhou. "Pater Noster!!! - Espantou-se o padre. "Como isso nasceu aí, meu filho?"
"Não sei explicar, padre. Tudo que eu queria era alguém que me escutasse, então nasceu esta aberração."
"E uma vagina, filho."
"Pois não é, padre. Uma vagina. E me veio nascer logo na testa."
O padre ajeitou-me melhor para ver de perto. Os pombos arrulhavam por ali.
"Ela lhe incomoda, filho?"
"Ela fala muito, padre."
O padre se aproximou um pouco mais.
"Diga alguma coisa, bebê!"
"Padre escroto!"
"Pois veja! Ela me chamou de escroto."
"Ainda por cima é atrevida. Mas me diga, padre, qual é o meu pecado?"
O padre pensou bem. E disse:
"Não há pecado algum. Converse com ela, meu filho. Explique a ela as necessidades do homem, as lamúrias da carne." Tocou levemente as mãos de Constantino. Apertou-as por sinal. Os pombos agora arrulhavam escandalosos. Um jato de luz varou os vitrais da catedral iluminando a face larga e rosada do sacerdote. Os olhos dele, antes castanhos, ficaram azuis. Uma azul melancólico. Constantino, é claro, reparou:
"Padre! Seus olhos ficaram azuis!"
"Ficam assim quando estou triste, sentimental." Respondeu o padre. Constantino coçou levemente as pestanas, pensativo.
"E será que vai adiantar conversar com ela, padre? Ela me parece muito geniosa."
" Com jeitinho, sim. Não é minha criança?"
"Puto!"
"Não devo rezar nada? um rosário? um terço? nada?"
"Essas coisas não adiantam muito, meu filho. São desatinos da alma. Quer um conselho?" Conspirou baixinho no ouvido de Constantino:"Deixe a carne livre!"
"Então me vou, padre, mais aliviado agora."
E partiram. Fizeram o caminho de volta seguindo por uma rua estreita. Constantino ia calado enqjuanto a Vagina assobiava agora um sambinha azedo. Parou de assobiar e dirigiu-se a ele:
"Reparou?"
"No que?"
"Ele está nos seguindo."
"Quem?"
"Ora quem? o padre."
E de fato, o padre os seguia. Seu vulto comprido e europeu esgueirava-se por ali, na penumbra dos postes.
"Que diabos ele quer?"
"O que acha? entra ali!" Apontou com o beiço, a Vagina.
"Ali? mas é um inferninho!"
"E daí? nunca entrou num antes?"
Entraram convictos que despistariam o padre. Este, por sua vez, não se fez de rogado adentrando no recinto sem hesitar. Uma vez lá dentro, casal aboletou-se no balcão.
"Este infeliz não vai ter a coragem de entrar aqui." Falou a Vagina. "Cuida! pede uma cerveja."
Foi servida uma cerveja e eles deram logo uma golada. Os olhos do padre procuravam o casal por todos os cantos. Como era um sujeito bastante alto, não demorou muito para localizá-los. Foi até lá. Escorou-se bem ao lado de Constantino, que entretido, olhava as meninas que brincavam no palco.
"Olá, meu rapaz!"
"Padre?"
"Não se angustie, meu filho. Também sou apreciador da carne."
Constantino pensou um pouco:
"Mas padre, não está errado?"
"Somos fruto da mesma lama, filho. Garçom, uma cerveja!"
Constantino olhou para ele que parecia bem mais jovem metido numa calça jeans justa e uma camiseta regata de cor preta. Expunha ali, todo um porte atlético. Dir-se-ia um pugilista aposentado.
"Mas padre, e os fiéis de sua igreja?"
"O velho costume ocidental de nos redimirmos por qualquer besteira. Faço apenas minha parte consolando estes infelizes."
Acendeu um cigarro e perguntou em seguida, levando o dedo á testa de Constantino:
"E a nossa menina, como está?" Em resposta, levou uma mordida. "Aiii, ela me mordeu, pois veja!"
"Esqueci de lhe avisar, padre. Ela é denteada."
"Padre Fritz." Corrigiu Constantino. "Sabe, meu rapaz, a vida no seminário me foi muito penosa. Cruel mesmo, eu diria. Qualquer lugar que se prive o homem dos anseios da carne, de sua estética amoral e de seus instintos mais básicos, acaba por transformar esse homem num pobre diabo. Nessas horas um cão tem mais valor que um homem. Se é que o senhor me entende. Suponho que sim, pois que também figura bem abaixo dos cães. Não foi á-toa, afirmo-lhe, que ela veio parar aí, na sua testa.
"Como assim, padre?" Constantino procurou disfarçar o embaraço. "Já o vi diversas vezes na pracinha, frente á Igreja, alimentando os pombos, quando na verdade cortejava as cadelinhas com pedigree. Não o condeno por isso, pois que também é um recurso para conseguir o que se deseja.
"É um canalha!" Sussurrou a Vagina entre os dentes. "Despache-o!"
"Padre, não tenho interesse algum no que diz." Falou Constantino com polidez.
"Penso que sim. Mas deixe-me contar as agruras do amigo."
Deu uma golada em sua cerveja e em seguida tragou pecadoramente seu cigarro:
"Não fui parar em um seminário por pura vocação, não. Mas sim, por causa de uma decepção amorosa. E foram muitas as decepções que pontuaram minha vida. A última foi a gota d'água e quase levou-me ao suicídio Optei pelo envenenamento tomando um litro todo dos produtos "Modalva" que contém alcalinos e hipoclorito de sódio, e digo-lhe, meu filho, não aconselho o envenenamento á ninguém, tampouco cortar os pulsos ou enforcar-se. Um tiro na cabeça eu recomendaria. Tem mais estilo. Pouca gente morre hoje com estilo. Contudo, minha tentativa foi em vão. Tornar-se um padre foi o que eu fiz. Ficaria assim, longe das paixões ardilosas que sempre cambaleiam para as desgraças do amor. Experimentaria um outro tipo de amor. O amor metafísico, não mais o cármico. Era o que eu pensava uma hora atrás até vocês me pisarem naquela Igreja."
"E?"
"Fizeram-me repensar os caminhos tortuosos do sacerdócio a que equivocadamente me dediquei."
"Seja mais objetivo, padre."
"Obviamente, meu rapaz. Apaixonei-me por ela."
"Por quem, padre?"
"Por sua vagina. Embora ela esteja convivendo com o senhor, aí, na sua testa, acredito que seja temporário, sem vínculo amoroso algum. De modo que..."
"Eu não lhe disse?" Interveio a Vagina.Vamos embora! Nem mais um minuto."
"Francamente, padre."
Constantino preparava-se para deixar o lugar quando o padre insistiu novamente segurando-lhe delicadamente um dos braços.
Ësperem um pouco! Quero convidá-los para um almoço amanhã em minha casa, em razão de meu aniversário. Completo 45 estações de chuva."
"Nem que a vaca tussa." Disse ela dessa vez.
"Amanhã nos é impossível, padre. Levarei Cíntia para passear no cais."
"Cíntia? Espantou-se, ela.
"Já tem até nome. Que linda! Quando os vejo de novo?"
"Não sei padre. Passar bem o senhor."
Constantino e a Vagina deixaram o inferninho. O padre ficou lá no balcão com sua cerveja e com sua tristeza infinita transbordando em azul.




"O Dragão do pecado" (William Blake)

sábado, 29 de janeiro de 2011

CAPITULO II - POR MAIS ABSURDO QUE FOSSE, A VAGINA FALAVA

Á NOITE, CONSTANTINO FITAVA em silêncio o teto desbotado de seu quarto quando ouviu repentinamente uma voz lhe indagar:
"Então? Vais ficar aí parado a noite inteira pensando?"
"Hein?"
Pulou da cama, assustado.
Vamos dar uma volta, tomar um chop, nos divertir, cuida!"
"Mas que raios! Quem está falando?"
"Eu aqui, na sua testa, esqueceu?"
Por mais absurdo que fosse, a vagina falava.
"Ainda por cima, fala!"
"Pois é... agora troque esse pijama ridículo, ponha uma roupa decente e vamos dar uma voltinha, anda!"
Ainda muito aturdido, Constantino obedeceu.
"Antes de sairmos, espere só alguns minutinhos."
"Por que?"
"O telefone vai tocar. Eu sei como são os homens."
Constantino aguardou. Dito e feito. O telefone tocou. Atendeu:
"Sim?"
"Boa noite! É o seu Constantino?" Perguntou uma voz educada.
"É ele sim, pois não."
"Seu Constantino, é o doutor Cavalcante, lembra? esteve hoje no meu consultório pela manhã."
"Ah, sim, recordo."
"Bom, liguei para... saber como está passando, e também para convidá-lo
para jantarmos juntos."
"Diga a ele que não pode, que já tem compromisso." - Sussurrou a Vagina.
"Hoje não posso, doutor."
"Ora, mais porquê?"
"É que tenho um compromisso."
Silencio do outro lado.
"Posso ligar amanhã? - Insistiu o médico."
"Talvez. Passar bem, doutor."
Desligou.
Ele nunca me enganou desde o início." Falou a Vagina. "Não valem nada. Agora vamos indo."

***

A cidade fervilhava. Os bares lotados de gente. Constantino entrou numa choperia animada. No balcão, pediu um chop de seu agrado. Deu uma golada e respirou fundo:
"Não é uma delícia?" - Perguntou a Vagina. "Agora peça um pra mim, levante esse olhar e procure se divertir."
"Isto não está acontecendo..." Reclamou Constantino.
"É claro que está. Encare os fatos e pare de piscar, isso me irrita."
Pelas tantas, um jovem de porte atlético, escorou-se no balcão, bem próximo de Constantino. Pediu um chop e dirigindo-se á Vagina, puxou conversa:
"Tudo bom, princesa?" sozinha? esperando alguém?"
"Diga a ele que está esperando alguém. Não me obrigue a falar." - Ordenou a Vagina, mordendo os lábios.
"Estamos sim, cavalheiro. Aguardamos alguém."
"Namorado?"
"Não interessa! Diga a ele."
"Não lhe diz respeito, moço!"
"Desculpa então."
E o jovem retirou-se, constrangido.
"Muito bom, Constantino. Viu só como não é nada fácil para nós? Eles não nos deixam em paz um só minuto. Ás vezes é preciso ser deselegantes com eles, mas só ás vezes, entendeu? Alguns até que merecem nossa atenção, outros..."
"Cala essa boca!" Gritou Constantino. As pessoas em volta olharam para ele. Desculpou-se e tudo voltou ao normal.
"Nunca mais fale nesse tom comigo, ouviu seu Constantino?" Protestou a Vagina bastante irritada. "Peça mais chops!"
Após o quinto ou sexto chopm ela pediu para ir ao banheiro. Lá, a cena seria constrangedora se não fosse hilária. Um bêbado adentrou cambaleante ao banheiro e o flagrou inclinado com a testa bem próxima ao bidê:
"O que o senhor está fazendo? Está passando bem?"
Constantino, que por sua vez já estava bem alto dos chops, respondceü:
"Não vê que estou ocupado, urinando pela testa?"
Naquela mesma noite, ele decidiu:
"Amanhã vamos á Igreja!"

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

CAPÍTULO I - A APARIÇÃO

Naquela amanhã ao acordar, Eflúvio Constantino do Espírito Santo sentiu-se muito estranho e foi até ao banheiro averiguar. O que viu no espelho o deixou paralisado. Deixaria qualquer um, eu soponho. Pois que havia ali em sua testa uma abertura de 10 cm que lhe sorria, um sorriso mudo. Contraía-se delicadamente ao leve franzir dos cenhos. Estava viva. Constantino fechou com bastante força os olhos e ficou um tempão assim. Abriu-os novamente e a estranha abertura permanecia ali. Tocou-a levemente com o indicador e ela contraiu-se de novo. Parecia brincar. Ele então sentiu uma coisa esquisita: um prazerzinho tolo, meigo; uma sensação agradável mexendo com todo seu fluxo orgânico. Piscou muitas vezes procurando entender. Massageou demoradamente os grossos lábios e por certo quase orgasmou. Alarmado, ganhou apressado as ruas sem endereçar o olhar a ninguém. Foi procurar um médico:
"Do que se trata, seu Constantino?" Perguntou um médico de cabelos embranquecidos e um ar solenemente cansado.
"Sabe o que é, doutor... é que... bom... como explicar isso..."
"Pode falar, seu Constantino."
"É que, na minha testa..."
"O senhor a machucou, estou vendo. E me parece que estar sangrando."
"Sangrando?" Constantino pulou da cadeira. "Não está não, doutor... quer dizer... pode estar sim. É que talvez ela tenha menstruado."
O médico sorriu, considerando aquilo muito engraçado.
"Sua testa menstrua, seu Constantino?"
"O que nasceu nela sim, doutor."
"E o que nasceu nela, seu Constantino?"
"Uma vagina, doutor. Uma vagina."
Intrigado, o médico se aproximou do paciente. Retirou delicadamente a gaze que lhe vedava a testa e com um olhar grave, examinou o que havia ali. Era de fato uma vagina. Uma vagina rosadinha e de lábios ligeiramente grossos. Ele que não fumava há meses, retirou da gaveta um charuto cubano que sempre guardava para ocasiões excepcionais. Como essas que cercam o mundo e a vida das pessoas. Levantou-se e foi olhar na janela. Caía uma leve garoa naquela manhã sem graça.
"Então, doutor? o que me diz o senhor?"
"Uma anomalia interessante." Respondeu o médico de costas para o paciente. "Mas o que o senhor quer que eu faça, seu Constantino."
"Retire-a daí, doutor."
"Acontece, seu Constantino, é que não sou nenhum especialista em remoção de vaginas."
"E o que eu devo fazer então, doutor?"
"Sugiro que procure um ginecologista para ver se está tudo bem com sua vagina. Em seguida, um especialista nesse caso. É o que sugiro."
Constantino deixou o consultório muito triste. Mas no dia seguinte, já se encontrava numa clínica ginecológica aguardando sua vez. As horas trabalhavam com enxaqueca e algumas mulheres que ali se achavam, olhavam curiosas para ele. Já estava imapaciente. As mãos bem frias. Até que:
"Seu Eflúvio Constantino do Espírito Santo!" (Ele odiava aquele seu primeiro nome. Devo dizer-lhes.) Meio sem jeito, ergueu o indicador:
"É o senhor?"
"S-sim, s-sou eu." E até ga-gue-jou.
"Pode entrar!"
Esquivou-se daqueles olhares condenatórios e adentrou a sala ao lado. Desta vez, foi um jovem médico que o atendeu:
"Onde dói, seu Constantino?"
Em pé, Constantino olhava para o médico esfregando as mãos frias. Suava agora por todos os poros.
"Vamos, sente-se seu Constantino. É natural que na primeira vez seja um pouco constrangedor, mas procure ficar calmo, sim? Pelo que vejo, será apenas um exame de rotina. Dispa-se e vista aquela bata rosa."
"Mas é que..."
"Eu compreendo, seu Constantino, eu compreendo." Ele vestiu a bata rosa e acomodou-se na mesa ginecológica. Afastou bem as pernas enquanto olhava assustado para todos aqueles aparatos medievais em sua volta. O médico pôs-se a examinar-lhe as partes inferiores:
"Doutor, o problema não é aí embaixo." Corrigu ele.
"Ah, não?"
"Não, doutor. É aqui em cima, na testa."
O médico olhou-o com estranheza."
"Retire a gaze e verá." Ele obedeceu. Minutos depois...
"Espantoso!"
"Pois não é, doutor!"
"Como ela foi parar aí?"
Äinda não sei. Pediram-me que eu procurasse um ginecologista antes de ir a um perito."
O médico alcançou um espéculo. Focou a luz na direção da testa dele e tornou a repetir: "
"Mas é mesmo espantoso! Nunca vi coisa igual." Observou. "Alguma disminorréia frequente?"
"Disminorréia, doutor?"
"Alteração extragenital. Dores durante as relações."
"Asseguro-lhe que ela é virgem. Apareceu-me ontem, pela manhã."
"Mas é muito espantoso!"
O jovem médico demorou-se horas a examinar minuciosamente a bela vulva. Estava encantado. Já progredia em Constantino uma leve irritação, quando o médico, enfim, parou de examiná-lo e disse:
"Vista-se, seu Constantino! Eu já terminei."
Vestiu-se ás pressas e foi sentar-se em uma mesa, defronte ao médico:
"Então, doutor?"
O médico jogou o corpo para trás e disse:
"Bom, seu Constantino, antes de tudo, não há nada dce errado com a vagina. Apenas um leve fluxo sanguíneo, o que é natural. Nada de alarmante."
"Mas o que eu faço, doutor?"
O médico tinha agora as mãos apoiando a nuca e um olhar insinuador.
"Vou encaminhá-lo a um especialista nesse tipo de anomalia e ele verá o que pode ser feito. É um caso raro, seu Constantino. Há de convirmos."
E ele foi deixar o paciente até á porta, coisa que não fazia com frequencia.
"Seu Constantino, responda-me uma coisa."
"Pois não, doutor."
"O senhor é casado?" Perguntou o médico olhando direto nos olhos do outro. O olhar do médico era mesmo insinuador. Além do que, segurava demoradamente as mãos já não mais frias de Constantino.
"Solteiro, doutor, por que?"
"Por nada, seu Constantino. Apenas curiosidade minha. Passar bem."


continua amanhã...

O HOMEM COM A ABERTURA NA TESTA - RESENHA

Imaginem um dia acordar e descobrir uma estranha abertura em sua testa. E pior: num rápido exame mais apurado, concluir que a tal abertura se trata de uma vagina. Falante. Esse é o mote dessa estória do escritor amazonense Márcio Santana.
A partir do absurdo acontecimento,desfilam ao longo de quase cem páginas, tipos marginais que acompanham a estranha rotina do funcionário de repartição Constantino e sua nova "companheira", que ganha o nome de Cíntia. A vagina e seu descontente portador passam por uma constrangedora visita ao ginecologista, aturam cantadas em bares, vão ao confessionário, perdem o emprego, tornam-se atração de circo e vivem uma conturbada relação de amor e ódio.
Márcio Santana imprime um ritmo ágil e linguagem simples típicos do conto, gênero literário por onde também se aventura. Essas características fazem de "O Homem com a abertura na testa", uma leitura de supetão, que começa tão rápido quanto acaba, sem perder suas qualidades. Interessante notar o uso contido nas descrições das personagens, delineando em poucas linhas as personalidades inegrantes de Constantino, Padre Fritz e, em especial a temperamental vagina Cíntia, deixando ao gosto do leitor imaginar como eles são e, ao mesmo tempo, dando algumas indicações bem específicas para tal.
"O Homem com a abertura na testa", mostra uma notável evolução nos escritos de seu autor, que também é o fundador da Revista Alternativa Sirrose.
A estória é uma conquista não apenas por seu conteúdo, mas por trazer o frescor de autores contemporâneos ainda a conquistar seu devido espaço na literatura local.

Susy Freitas é jornalista e poeta. Colaboradora da Revista Alternativa Sirrose.

APRESENTAÇÃO - O HOMEM COM A ABERTURA NA TESTA

Os papéis que tremem á brisa quente de uma tarde de sábado querem a liberdade de correr livre pela Joaquim Nabuco como papéis ordinários que ao impulso de uma lufada entrecortam os passos pesados dos transeuntes minguados do centro de Manaus. Para o escritor, entretanto, ali estava a sua obra expressa, para além da mera ideia de entidade: a experiência que se construia desde a sua boca se constitui aos meus ouvidos como a revelação inspirada de que fala Octávio Paz - a recriação de nós mesmos.
De repente eu não estava sentada em frente ao Diretório Central dos Estudantes fumando meu pigarrento Lucky Strike, não. Tinha sido tragada pela experiência ancestral de ouvir a uma estória e era ao mesmo tempo a indiazinha ouvindo as cosmogonias da sua tribo, a senhorita medieval observando com o povo o auto que traduz a fé e a mulher solitária que se senta ao fundo da sala de cinema, sedentas pelo enredar da história que se configura nessa tradição humanizadora de contar suas próprias histórias com metáforas, com o sagrado.
"O Homem com a abertura na testa" que Márcio Santana teve o bom gosto de ler para mim é, como toda revelação inspirada, uma fábula de delicada poesia de forças (que se confrontam e convergem para o humano em cada um) femininas e masculinas; fábula construída com a linguagem brutal do cotidiano fantástico no qual se inserem as personagens. Aponta com sarcasmo para a plenitude, onde essas forças opostas se complementariam numa desequilibrada harmonia onde o sexo é a energia potencial das ações desencadeadas.
É com esse texto que Márcio Santana dá os primeiros passos dentro da construção do fantástico e se esgueira pelo patamar de uma literatura amazonense que me parece mais comprometida com a Manaus do século XXI- a que tantas vezes nos soa tão estranha quanto as situações arquitetadas nessa novela. E se esgueira estando próxima das praças, das pessoas, da loucura dos caminhos baixos da cidade, sempre se utilizando de um olhar poeticamente terrorista.
"O Homem com a abertura na testa" também já cabe no que ítalo Calvino nos fala sobre o estilo. "(...) o elemento sobrenatural que ocupa o centro desses enredos aparece sempre carregado de sentido, como a irrupção do inconsciente, do reprimido, do esquecido, do que se distanciou de nossa atenção racional (...)", pois que trabalha com alegorias da realidade social na qual nos encontramos. Sociedade essa que dialoga com nuances do gênero, com camadas de sexualidade, com a aceitação de novas epistemologias comportamentais que nos permitem encontrar o feminino no interior do masculino e vice-versa.

Daniela Moraes.